top of page

TExtos críticos

Objetos : Do porão ao sótão - livro, 2022
Floriano Martins*

Em sua essência os objetos combinam sempre com outra ideia que fazemos deles. Alguns talvez até sugiram uma pequena visita do acaso para que os deuses da escrita voltem a se reconhecer.

Certos objetos preguiçosos acabam por indagar onde vão encontrar uma nova função para eles. Porém a insônia toma forma de fulgor e a metamorfose age sobre eles garantindo que, não importa a forma que assumam, será sempre uma surpresa encontrar diante do espelho uma imagem jamais especulada em sua natureza.

Muitos objetos são como cordames desencontrados que deveriam afinar o mesmo instrumento, garantir a caminhada dos mesmos pés, facilitar que a arquitetura erga seus corpos no vazio. Um livro que aos poucos vai sendo escrito, por exemplo, ele é uma combinação de objetos encontrados pelo caminho. Não importa as páginas que foram ficando para trás, o que a leitura preconiza é que as imagens devem se multiplicar revelando novas linhas do horizonte. A simples ideia de virar uma página, que pode equivaler a renomear um objeto ou moldar outro, talvez seja aquela linha de insuficiência que faz com que as coisas mudem de rota.

Para onde iríamos, afinal, quando os marcos essenciais da existência estão borrados? Acreditar no novo mundo prometido pelos híbridos? Nada se reconhece ou se completa longe do toque, não importa que a alma enumere as sutilezas com que percebe as coisas à sua volta. Os objetos de algum modo se mantêm atentos ao fato de que a madeira ou metal de que são constituídos é mais do que um truque de linguagem. Qualquer um de nós pode até amar uma imagem, porém jamais se sentirá completo no vazio de sua lembrança. A imaginação reconhece o dilema de seus truques muito mais do que aquele que a imagina.

 

 

FLORIANO MARTINS (1957). Poeta, ensaísta, dramaturgo, tradutor, artista plástico.

Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Curador dos projetos “Atlas Lírico"

JOGO DE PACIÊNCIA

Jogo de Paciência (2020)

Glaucia Nogueira*

Ana Sabiá diz que se encanta com as infinitas possibilidades de mundo que descobre, mas na verdade é mundo que se encanta com o olhar de Ana Sabiá. A fotografia  é um dos meios que utiliza para seus vôos de investigação. E esse encantamento chega até nós através de umas série de imagens de auto-representação que flutuam nas fronteiras entre o documentário e a ficção.

 

Ana cria, recria, reinventa a sua melancolia. Neste jogo de Paciência, ela nos liberta do confinamento. Assistimos atentos, capturados pela incessante mutação do seu espaço. Diariamente a sua câmera registra uma imensa capacidade de abstração. E já não sabemos mais se estamos diante de fotografias ou esculturas que nos confrontam com a questão identitária do feminino, o corpo, a ilusão.

 

Ana nos envolve com seu tecidos e nos embarca nesta verdadeira viagem pelas tramas da sua liberdade criativa. E então, de repente, nos vemos nesses espelhos multifacetados que reproduzem reflexos caleidoscópicos.

https://www.iande.fr/covide-19-et-photographie/jeu-de-patience-lunivers-imaginaire-dana-sabia/

*Gláucia Nogueira é fotógrafa, produtora cultural e co-fundadora da plataforma Iandé que fomenta e difunde a fotografia brasileira na França. Bacharel em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Bacharel em Cinema e Fotografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, desenvolve projetos e produções multimídia entre o Brasil e a França.

MEDUSA

MEDUSA

Juliana Crispe*

 

 

Os trabalhos da artista Ana Sabiá têm como disparos o corpo e a auto-reapresentação como estratégias de problematização política e feminina através da fotografia autoral. Segundo a artista, ela tece um diálogo estético e relacional com os procedimentos surrealistas para a construção de suas imagens. Os referenciais imagéticos de Ana, em seus palimpsestos, criam redes, tecem formas, desorientam pontos sobre a fotografia, o surrealismo, a produção da mulher ao longo da história e na contemporaneidade, tornam-se resistência, força-motriz e linhas de fuga.

 

Para quem habita os trabalhos de Ana Sabiá, reconhece o processo de criação artística deste corpo que alinhava, como costura não modal, a auto-representação por vias da operação e respingo surrealismo em uma profunda análise histórica desdobrada em suas pesquisas, ao atualizar os referenciais dos surrealistas propostos por homens e que ocultaram a ocupação da mulher como agente participativa e criadora daquele movimento.

 

Ana Sabiá traz em suas obras uma relação intrínseca com a natureza e seus atravessamentos com os corpos femininos criando assim identidades subjetivas que reforçam pela arte e ficção a criação de si. O autorretrato corpo-natureza, ou como acéfalo, dialoga com as pesquisas de Annateresa Fabris ao identificar conceitos contemporâneos sobre o autorretrato, que fragmentam ou ocultam o rosto, e que mesmo assim se reafirmam como auto-representação desconstruindo a rigidez do conceito de identidade.

 

Nas palavras da artista: Corpo, carne, ossos, sangue, leite, gozo, lágrimas e demais matérias palpáveis se corporificam e encarnecem os objetos de afeto, os objetos simbólicos e os objetos ordinários na tentativa poética de amalgamar a vida na arte e a arte na vida para remontar o documentário surreal de um passado, compreender o agora e semear para além. Um corpo estandarte de combate, ideias e amor.

 

Um corpo que quebra o espelho ao olhar para si e em fragmentos reconhece outros corpos. Um corpo-natureza de sobreposições que se torna informe. Um corpo permeado, perfurado por personagens, germinações, mortes, renascimentos. Um corpo-água que flui e transborda. Um corpo-mãe de muitas moradas.

 

Adentrar nas obras de Ana Sabiá é deixar-se fisgar como para quem olha para medusa, não em estado de petrificação, mas de vislumbre, encantamento e também em identificações ou assombros que tocam a pluralidade da mulher contemporânea, entre ser artista, mãe, múltipla e corpo político. Assim deixamo-nos capturar pelas camadas das imagens produzidas por Ana, pelas sensações corporais ativadas nas peles, nos arrepios, na sedução provocada pelas fotografias de Ana Sabiá.

 

Assim, o eu-outra nunca é uma dupla mas, à semelhança da medusa, uma cabeça ramificada, rizomática que grita. Abarca cada mulher, artista, pesquisadora que constrói com Ana essa pesquisa que é sobre si, sobre as outras de si mesma e sobre tantas outras mulheres que Ana convida para com ela dançar ciranda e problematizar a domesticidade feminina. Problematizar o corpo feminino como espaço à disposição – feminismos.

 

Ana reverte à arte como potência de vida, como luta, como causa, como política, mas também, em sua produção, há caminhos para fabulações possíveis. Como centro de um universo em conexões que se pautam pelo feminino e pelos feminismos, além de sua atualidade, é revigoramento e tornam-se formas de contágios.

Sigo desejante que vejam medusa como vi.

https://www.choquecultural.com.br/pt/2020/08/15/rede-choque-apresenta-ana-sabia/

*Juliana Crispe é Curadora, Pesquisadora, Professora, Arte-educadora e Artista Visual. Atua como professora no curso de Artes Visuais no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. É membra da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte. É membra do Conselho Deliberativo do Museu de Arte de Santa Catarina – MASC. Bacharelado, Licenciada e Mestre em Artes Visuais. Doutora em Educação. Coordena o Projeto Armazém que desde 2011 realiza exposições e feiras tendo como objetivo a divulgação do múltiplo e da publicação de artista. Coordena o Espaço Cultural Armazém – Coletivo Elza (desde 2016 -) em Florianópolis; um coletivo de mulheres com o objetivo de promover arte, cultura, educação, infância e empoderamento feminino.

Maternidade inquieta

Maternidade Inquieta (2015)

Madonnas Contemporâneas | Massimo Canevacci*

A representação maravilhada da maternidade constituiu um dos momentos centrais da arte renascentista. O amor abnegado, aquele que se oferece espontaneamente à criatura que surge à vida, é característico da mãe. Ao mesmo tempo, muitos artistas pintavam suas Madonnas tendo suas amantes como modelos, mulheres por quem eram apaixonados ou que incorporavam um enigma. E o enigma, ao contrário do mistério, toda vez que se pensa de conseguir resolvê-lo retorna mais poderoso do que antes. Como o mito. Em resumo, na Madonna com o Menino se cruza não somente uma religião - a cristã obviamente - mas aquilo que se chama sagrado. E o sagrado recusa as classificações institucionais para exprimir a própria imanência mutante que flui entre corpos e objetos circundantes.

 

Nestas fotografias de Ana Sabiá, o sagrado liga a mãe, a criança, o jardim, e sobretudo, as roupas penduradas. Esta irresolúvel tensão estética entre o sincretismo sagrado e a maternidade inquieta difunde a arte cercada pela aura em sua contínua revisitação. E se a aura circunscreve o enigma, tais fotografias são auraticamente reprodutíveis.

 

Na tradição renascentista, era o homem pintor que hétero-representava a maternidade sorridente das várias Madonnas. Nestas imagens, é uma mulher que se auto-representa junto a uma variedade de outras mães sem delegar este poder ao outro sexo. Nos cruzamentos de olhares entre Ana Sabiá fotógrafa, as outras mulheres e seus filhos performa o sentido de uma maternidade outra. A decisão de colocar as roupas penduradas como identidade lúdica do papel das donas de casa transforma a sequência em coreografia e libera a beleza incerta.

 

As roupas não estão apenas "penduradas", isto é, inertes, mas adquirem uma vitalidade que se sobrepõe aos corpos maternos. Na foto emblemática “eu-Madonna I”, Ana se auto-retrata investigando quase imóvel o filho, segurando a cabecinha, com um leve sorriso, enquanto um lençol, talvez uma toalha, que cai sobre sua cabeça como se para abraçá-la e infundir uma sombra em seu rosto. É essa sombra que causa inquietude ao observador, por isso a minha sensação na frente destas fotografias é a de entrar na maternidade inquieta.

 

Essa inquietação se manifesta plenamente através de um olhar perturbador no retrato “eu-Madonna II”. Aqui, a arte fotográfica baseada na auto-representação exprime a extrema desorientação. Junto às roupas penduradas e vivificadas, aparece um bichinho de pelúcia de sorriso malicioso que parece piscar para a mulher. Ao lado dele um pano, talvez uma camisa, acaricia-a ou, talvez, oculta uma parte de seu rosto; logo depois, as calcinhas pretas emitem um sussurro fetiche. O bebê acordado é embalado nos braços maternos, com sua bochecha apoiada ao seio da mãe. Um seio que irrompe do sutiã como se quisesse sair para afirmar que a beleza pós-parto, dos quais muitas vezes se fala, é irrefreável.

Esta pulsão erótica da inquietação materna, envolvendo a criança e também o observador, se transformar em um foco preciso, quase inevitável: o olhar de Ana, uma mãe fotógrafa, que é sobretudo mulher. O olhar sutil e a cabeça ligeiramente reclinada comunicam uma incerteza sensorial e uma inquietação enigmática na foto inteira. O rosto é quase impassível e o olhar se dirige à câmera sem incertezas. Assim, ela olha para si mesma e para todos nós. Um olhar direto que coloca o espectador no papel de co-criador ativo do trabalho. Não é possível observar parado tais fotografias: elas empurram o olhar - cada olhar - a deslocar-se de sua identidade fixa e desafiar o acesso em direção a itinerários inquietos e não controlados. O rosto inteiro, ou melhor, a foto toda expressam o enigma da beleza feminina que não se enclausura dentro do papel da maternidade, mas foge de qualquer classificação e percorre cada olhar que cruza com o seu.

 

No ser mãe existe um prazer um prazer que não se dirige apenas - como em outras fotos - para o filho para acariciá-lo com os olhos afetuosos. Talvez - e aqui rodamos em torno ao enigma - em tais olhares, há uma afirmação radical de uma erótica feminina que ultrapassa qualquer estereótipo. E a arte da fotógrafa, ou seja, da própria Ana Sabiá, é a manifestação inquieta desta erótica que também se deve afirmar,  especialmente, na composição da criatividade sua e do seu gênero. Então, é claro que a mulher - cada uma das mulheres aqui representadas - não se imobiliza no clássico papel estereotipado da “mamãe” com roupas penduradas e jardim bem cuidado. A mãe é principalmente uma mulher criadora. Ela move a sua maternidade não só na auto-celebração do papel materno, em sua visão tradicional, mas na determinante afirmação do seu desejo inquieto de prosseguir criando além e ao lado de seu filho. E assim, ao invés de assumir passivamente o papel de dona de casa, as fotos transbordam junto com a fotógrafa.

 

Uma das análises sobre a Monalisa de Leonardo que sempre me tocou - e que me foi transmitida também pelo meu pai pintor - é sobre aquele sorriso que define o enigma da beleza feminina, sem resolvê-lo. Ela sorri para o pintor que não pode ou não quer penetrar naquele enigma erótico. E Leonardo joga com esta reciprocidade de olhares oferecendo à arte a impossibilidade de "entender" - isto é, de fechar dentro do círculo da racionalidade concluída, baseada em uma identidade estável - a ternura inquieta de sensualidade feminina.

 

De acordo com tal tradição, as fotografias aqui apresentadas têm uma simbólica no rosto iluminado por uma luz atrás de um lençol pendurado (“eu-Madonna VII”). E o olhar obscuro é novamente dirigido para a câmera fazendo-se perturbador no observador observante. A manifestação fantasmagórica da mãe causa o estupor do filho que abre os braços e tenta levantar a orla do pano para descobrir o que realmente está por trás. A minha posição e, espero, a de muitos observadores é a mesma da criança: acompanhar e se perder na representação estupefata de tal foto, para continuar a imaginar o que está por trás do véu. O enigma da beleza materna criadora é insolúvel, assim como a sedução da arte em geral e em particular desta fotógrafa mulher - Ana Sabiá - que explora a maternidade além de cada estereótipo para dirigir-se em direção à sua e à nossa inquietação.

Massimo Canevacci é antropólogo, etnógrafo, escritor e professor de Antropologia Cultural e de Artes e Culturas Digitais na Faculdade de Ciências da Comunicação “La Sapienza” (Roma, Itália). Como professor visitante atuou em diversas universidades européias, norte-americanas, em Tóquio (Japão), em Nanquim (China) e, no Brasil em Florianópolis (UFSC), Rio de Janeiro (UERJ) e, atualmente, é professor visitante na Universidade de São Paulo (IEA-USP). Entre suas publicações destacam-se: A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana (Studio Nobel, São Paulo, 2004); Culturas eXtremas (DP&A, Rio de Janeiro, 2005); Fetichismos Visuais (Atelier, São Paulo, 2008); A linha de pó: a cultura bororo entre tradição, mutação e auto-representação (Annablume, São Paulo, 2012); SincrétiKa: explorações etnográficas sobre artes contemporâneas (Studio Nobel, São Paulo, 2013). 

A fotografia como espelho

Ana Sabiá e a fotografia como espelho (2016)

"Um dia será o mundo..." | Lucila Horn*

Tive contato pela primeira vez com o trabalho de Ana Sabiá em 2011, através de uma fotografia de caráter documental com o olhar para fora, para o lugar e o contexto. Imagens com potência de alma, mas sem o rosto de Ana. 

Em 2013 reencontrei o trabalho da artista mais voltado para o humano e menos para o lugar, em uma unidade corpo natureza que independente do onde, ali estava o tempo/espaço da fotografia como equivalente de um conceito. O trabalho demonstrava um deslocamento de perspectiva na expressão de Ana, mas estava em trânsito. Desde então acompanho e presto atenção no desenvolvimento desse processo.

Com o trabalho “Madonas contemporâneas”, Ana sai do olhar para fora e passa a olhar-se, passo fundamental para o amadurecimento de um processo autoral que lhe ofereceu uma espécie de anteparo sem o qual as coisas do mundo não ganhariam forma para produzir seus significados. Ana coloca-se em um lugar onde sua subjetividade encontra ressonância e a construção da linguagem ajuda a reverberar sentido além da imagem, onde o que não está na fotografia comunica tanto ou mais do que aquilo que nos é dado a ver. 

Mas é no seu último trabalho, ainda em processo, que Ana Sabiá cresceu como autora em uma pesquisa criativa sensível e consciente, em um equilíbrio delicado entre linguagem, subjetividade e clareza conceitual. As fotografias desta série criam uma dupla interpretação, demarcada pela imagem em si que nos faz próximos do universo feminino por sua própria superfície evidente, e por outro lado nos leva para uma interioridade inalcançável. É justamente essa impossibilidade de tocar este interior que faz escapar por pequenas fissuras um espelho por onde nos vemos. Diferente de um documento ingênuo do mundo que se vê como prosa do real, a auto representação e a manipulações plásticas se transformam em poesia. E isto não é uma receita, uma tendência ou um exercício, isto é autoria pessoal e intransferível.

* Lucila Horn é curadora, pesquisadora e fotógrafa. Idealizadora e produtora do Floripa na Foto, Festival de Fotografia de Florianópolis. 

Please reload

fotografia autoral • arte

bottom of page